segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

GENUÍNO

GENUÍNO

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Meu amor-genuíno:

Vejo-te neste quarto branco. Caminho para ti e espero por um sinal teu. Mas permaneces deitado nesse mundo sem som que é agora a tua cama. Neste silêncio, escrevo-te para afugentar o fim. O mundo é, de facto, um sítio frágil. Onde estarás tu agora? Nos campos onde tanto rimos de corpo adolescente exposto ao vento? Nas cidades que visitámos numa correria infindável de quem quer abraçar a vida?

Sempre senti terror de te perder. E agora perco-te aos bocadinhos, um dia de cada vez, entre estas quatro paredes brancas interrompidas apenas pela porta por onde se processam as entradas e saídas da enfermeira. Estás em coma desde o acidente. Se acordasses, meu amor, se acordasses, dir-te-ia «eu bem te disse para não conduzires à noite naquela estrada». Sabes, eu notava que os teus olhos já falhavam. O teu corpo também já se curvava ao jeito daqueles velhos que pensámos nunca chegar a ser. Vivemos sem limites e, contra todas as probabilidades, permanecemos juntos ao longo destes 30 anos.

Hoje é a data do nosso aniversário. Trouxe-te aquelas conchas rosadas da praia que mais amas. Apanhei-as ao nascer do Sol – como tu tanto gostas. Falei com o médico, que me disse: «lamento muito». No entanto, hoje não é dia para chorar.

Hoje é dia de celebrar a vitória do amor sobre a vida. Acredito que uma palavra ou um gesto meus te farão regressar desse local onde te perdes. Espero apenas que esse gesto ou essa palavra se manifestem neste passar lento dos dias. Acreditar é também lutar - e eu luto por ti em cada dia.

Muitas vezes, parece-me que sorris. Aguardo – unicamente - que abras os olhos. Assim poderás ler as cartas que escrevi para ti todos os dias. E encontrar nelas, talvez, a inspiração para a música que habita os teus olhos cinzentos.

Com um beijo,

A tua Princesa-de-Verniz

Esta carta foi enviada para o III Concurso de Cartas de Amor Alusivas a São Valentim promovido pela Biblioteca Municipal Laureano Santos em Rio Maior. 3.º Escalão, 2.º lugar.