terça-feira, 20 de julho de 2010

OS TANQUES DO PALÁCIO

São três os tanques
da Quintinha:
num moram patos e tartarugas,
noutro rãs, insectos
e a vida secreta do anoitecer.
No último reside a verdade sem rugas
de libelinhas, limos e fetos
estendendo a sua morte em linha
recta às flores
e aos campos

em cada árvore surge a sombra
de uma palavra
talvez precipitada
dispo-me de mim
e procuro o que assombra
a água
turva que lavra
os sons da caçada

sou eu e muda assisto
ao espectáculo de enganos que se desenrola
no en-cantar de passos e pirilampos

lisa a existência
frontalmente emerge das ruínas
do ser

Sara Timóteo

QUINTINHA EM DIA DE INVERNO

cinzento o mar
cinzento o céu do Tejo ao longe

chove
e escorrem do solo da mata
os murmúrios primordiais
do Palácio
- caçadas, servos leais
assombrações ao luar –
e o silêncio de tudo o que falta
e no entanto se move
com repentina precisão

Sara Timóteo

O ARCO DO PALÁCIO DA QUINTA DA PIEDADE

No silêncio do arco
sob o coro de andorinhas e tempestades
surge o momento em que marco
a semente – antes que de mim te enfades
e prefiras sonhos de serpentinas
roupas finas e cetim

devagar me expando
errando
embora este instante ogival
fale
una todas as configurações
em esboçadas sensações
de diversidade e segredos
enredos
próprios do permanecer

Sara Timóteo

A FONTE SECRETA (DA QUINTA DA PIEDADE)

uma melodia cavalga
o delírio da Primavera
sob o céu da manhã-alga
ai! Quem pudera

dizer-me de que odor é feito este Sol
de flores juncado,
este descobrir precipitado
que avidamente se engole
na estupefacção de devoções antigas,
azulejos de branco maravilhados
e murmúrios de ribeiros secretos
sinais de Távora esgotados

É um monte. É o Sol. A manhã.
São as sereias em ondulante desdobrar
de alegria
e as conchas a transbordar
de ousadia

espantada deponho a minha oferenda

Sara Timóteo

A BIBLIOTECA (MUNICIPAL DA QUINTA DA PIEDADE) II

depois caminha
em direcção ao vaguear das nuvens
três livros que acarinha
- asinha, asinha

sobre o ácido terraço
descobre o rio Tejo parado
sob o brasão de pedra (de aço)
que encobre o edifício assombrado

mas sempre em união com o ser
que existe em si – asinha, asinha –
enreda-se novamente
na Quintinha
de segredos
e adivinhas

de mãos dadas
com o devir
a pequenina
sorri sabiamente
- para além dos livros

Sara Timóteo

A BIBLIOTECA (MUNICIPAL DA QUINTA DA PIEDADE)

Os passos da pequena princesa
ecoam nos corredores
e os livros conferem-lhe a certeza
de trazer vestidas mil cores

na Biblioteca
a menina voa com cada letra
pelo meio dorme uma soneca
e nos reinos cristalinos penetra

encantada devora cada caracter
onde encontra o desnudar
de si no desvendar
de outros

perto e longe de ser
seus impulsos escoiceando
espumando
como potros

Sara Timóteo

PÓVOA DE SANTA IRIA PALÁCIO DOM MARTINHO VAZ DE CASTELO BRANCO

É tempo agora de pousar a caneta
e lenta regressar ao instante
em que uma menina se descobre esteta
e desse momento em diante

há a luz a solidão o terror
brasões altivos confusos
túneis secretos com diferentes usos
árvores abelhas esquilos de ardor

num palácio escuro
de mistérios e cristal
neste momento eterno em que me curo
da solidez lúcida do que é real

Sara Timóteo

PÓVOA DE SANTA IRIA, ZONA RIBEIRINHA E FABRIL

nesta terra
me perco
na brisa que transporta
sílica
na lama castanha
perto do rio onde nascem rãs
e peixes turvos

a liberdade
disfarçada pelo som
de camiões que transportam
matéria-prima
e automóveis
importantes das fábricas
e restaurantes

enquanto as estradas cheias
de terra
ardem de impaciência

Sara Timóteo
PÓVOA DE SANTA IRIA, ZONA RIBEIRINHA E FABRIL

nesta terra
me perco
na brisa que transporta
sílica
na lama castanha
perto do rio onde nascem rãs
e peixes turvos

a liberdade
disfarçada pelo som
de camiões que transportam
matéria-prima
e automóveis
importantes das fábricas
e restaurantes

enquanto as estradas cheias
de terra
ardem de impaciência

Sara Timóteo

O Menino Sem Tempo

O menino sem tempo
Para o Daniel

Era uma vez um menino sem tempo. Ele corria, corria e o tempo nunca esperava para ele o agarrar. Tudo o que fazia era a pensar no que faria a seguir. Das aulas de natação para o karaté, dos percursos de leitura para os intervalos com os amigos, da vida para o que deve ser a vida.

O menino sem tempo esquecera a poesia das plantas que brotam nas manhãs frias de nevoeiro. Ele quase nada sabia da arte de espreitar as cigarras no Verão ou de fugir à chuva no Inverno. Contudo, sabia muitas coisas que os meninos da sua idade desconheciam: a diferença exacta entre uma caravela e uma nau, a constituição quase precisa das estrelas que as outras pessoas admiravam nas noites de céu limpo e muitos factos mais. Poderíamos quase dizer que o menino sem tempo era um sábio, se não fosse pela questão do tempo que não se deixava apanhar.

Uma manhã o menino acordou e o tempo estava à sua espera. Nesse dia, o menino fez tudo o que queria sem se preocupar com a tarefa seguinte. A tarde passou lentamente à medida que cumpria as tarefas planeadas para aquele dia. Ainda teve tempo para passear no parque nesse dia brilhante de Outono e de apanhar um passarito fugido de uma gaiola.
O menino levou o pássaro para casa e tomou conta dele. A partir desse dia sem tempo, o menino nunca mais se queixou da falta de tempo para fazer aquilo que mais gostava. De facto, apercebeu-se de que havia dias em que mal parecia existir a não ser para as tarefas que o esperavam. Mas era necessário crescer. Crescer é difícil e correr atrás do tempo é uma forma tão boa como outra qualquer de ocupar… o tempo.

Sara Timóteo

terça-feira, 13 de julho de 2010

Crónica dos Mares

O autocarro avança lentamente pela rua, contribuindo para bloquear parcialmente o trânsito enquanto recolhe passageiros. Segunda-feira de manhã, pensou. Que dia agradável para estar dentro de um autocarro. Os cheiros, os corpos de gente estranha entre si e as vozes aumentam a impressão de sufoco.
Lisboa. Alice abandona o autocarro na Praça do Comércio. Prefere calcorrear a pé a distância que a separa da estação do Rossio. A Rua Augusta, como sempre, abarrota de pessoas a passear, a vender, a criar. Alguns homens de aspecto asqueroso pedem-lhe dinheiro; Alice não faz caso deles. Apenas pensa no seu Simão.
Simão nunca se destacara em nada senão na imensa capacidade de fuga de que fazia constantemente uso.
Um homem com um blusão de cabedal esbarra com Alice, distraindo-a do rumo dos seus pensamentos. A culpa é minha, não sou talhada para ter filhos, ser boa esposa e desempenhar o papel de boa mãe de família, gosto muito do meu filho e faço tudo por ele, mas o Simão nasceu de um acidente astrologicamente configurado, de um momento de fraqueza e cresceu fraco, como se dos momentos de fraqueza se pudesse elevar uma sombra que perseguisse os que nascem dela, da fraqueza. Encarou o homem que esperava o seu olhar, Como é bonito, Com licença, Peço desculpa minha senhora, É esta a minha fraqueza, gostar demasiado de homens bonitos. O pai de Simão (o Cornudo) também era bonito, mas hoje Alice recorda apenas um breve sorriso perdido há muito na noite. Tem quarenta anos e essa noite aconteceu há vinte anos - apenas voara e rira como uma deusa enquanto o sol não a chamara novamente à vida, à realidade da cama vazia a seu lado. Alice fora feliz durante essa noite.
Ela olha para trás, o homem abandonou-a e segue o seu caminho. Sobe maquinalmente os degraus da estação e depois aguarda o comboio para Sintra. Alice espera a hora de partir, mas muitas vezes a partida é apenas a chegada a um conhecimento íntimo que não quisemos reconhecer antes.
Mais uma vez tenta compreender como tudo aconteceu, saiu com umas amigas e resolveu levar um vestido vermelho muito bonito que comprara com insensatez. O homem era mais velho do que ela e muito bonito também. Alice gostou de se sentir invejada por metade das mulheres que ali estavam, como ela, à procura de uma aventura. É um mistério o que disseram, o que fizeram, só se sabe que houve um filho chamado Simão.
Alice G. usufrui de uma qualidade bravia de urze associada à sua beleza. Ela sempre assustou os homens que a pretendiam conquistar e que depressa debandavam em busca de presa mais fácil. Contudo, entregara-se a um desconhecido. E dessa noite nascera o seu Simão, aquele menino (agora já homem e nunca um menino) que ela resgataria mais uma vez do abismo.
Ele está na estação a pedir dinheiro, magro, mas bonito. Inicialmente, não reconhece a mãe naquela desconhecida curvada e amarga que lhe estende a mão e diz, Vamos, meu amor, vamos para casa. Quem és tu, pergunta de olhos toldados, tu não és a minha mãe, vai-te embora, não quero ir para casa. Mas acaba por ir e é Alice quem o despe, quem o mete na banheira (chorando ao ver as cicatrizes minúsculas que lhe cobrem primeiro os braços, depois as pernas e por fim a barriga) e lhe dá banho, cantando. É Alice quem o leva ao médico, quem o ajuda a fazer análises e a começar um programa de reabilitação do qual Simão foge invariavelmente.
Sou apenas uma sombra, repete Alice para si própria, a sombra de um sonho morto perseguindo um fantasma que amo. O meu filho - e tantas eram as imagens que lhe vinham à memória, Simão tão inocente e calado, muito sério e compenetrado do seu papel de homem enquanto esperavam ambos por um autocarro que acabou por não vir. Tiveram de tomar um táxi na confusão de Lisboa. Ela lembrava-se bem desse dia, mas não ele.
Desta vez foi mais difícil trazer Simão para casa, ele grita no meio da rua que a velha gosta de homens novos e bonitos e que vai para a cama com ela por causa do jantar e do dinheiro, por nada mais. Havia uma rapariga com ele. Ela deveria ser bonita, muito bonita, mas agora faltavam-lhe os dentes (tão nova, que desperdício) e tremia, o seu corpo magro apertado em roupas sujas. Os olhos eram verdes e foram decerto eles que a meteram nesta vida, um amante e depois outro falando dos seus olhos com sinceridade e mostrando essa sinceridade para depois mentir em tudo o resto, convencendo-a a permanecer cada vez mais longe daquilo que é. Agora surge como uma ruína orgulhosa de si mesma e afasta-se sem remorsos de Simão, quer estar longe de sarilhos para continuar no percurso de auto-destruição que traçou.
Alice arrasta Simão para o táxi e arrancam. Simão planeia, feliz, tudo o que fará quando estiver fora daquela vida, embaraçando-a e trazendo-lhe uma enorme felicidade que logo morre em cuidados. É este o meu filho, pensa Alice, alegria e dor ao mesmo tempo.
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Avança para a beira do rio Tejo do qual está separada pelas grades de segurança brancas. Ao longo das margens emparedadas que fita compenetrada da sua lucidez, Alice encontra tainhas e percas que competem pelos bocados de pão duro que deixou cair, um a um, na água cinzenta que reflecte (hoje) os seus olhos. Apaga o cigarro, esse vício que agarrou quando fez umas noites no Poço do Borratém para pagar o funeral de Simão.
Ali, no Parque das Nações, espera o nascer da Lua Cheia. Na sua mão direita traz a oferenda a Iemanjá que lançará para as águas pensando noutra Divindade – mas dessa, há muito que está arredada. É velha e só Hekata de tochas na mão e vestes enegrecidas pela radiância poderá recebê-la agora. Alice esqueceu durante estes anos os costumes antigos. Depois do Cornudo, esse desconhecido de quem nascera Simão após a entrega da sua virgindade (o sangue misturara-se com o vestido vermelho), Alice afastara-se de si própria enquanto mulher. Sou uma inútil, fiquei prenha durante toda a vida e, como todas as mulheres que ao mar encomendavam os seus homens e as suas vidas, sabia que qualquer filho está sujeito à morte tanto quanto a sua mãe. Devia ter tido mais filhos, sabia, queria, faria – ia, ia, ia.

A Mãe de Santo Clarisse afirma que este caso pode ser tratado. Basta manter as oferendas mensais a Iemanjá e a Iansã pela módica quantia de €150 por consulta. Obviamente, Alice suportará apenas a primeira oferenda. Opta por Iemanjá porque lhe agrada a ideia de uma Divindade que recebe as coroas floridas e os devotos de braços abertos, erguidos no meio do tumulto marinho dos oceanos africanos, asiáticos e lusos que correm nas veias de todos os que vivem e nascem em Lisboa. Iemanjá aparenta ser mais… abrangente (como detesta esta palavra). Talvez seja mais generosa para com os seus problemas e aflições de mãe destituída da sua função do que a Senhora Iansã, rebelde nas tempestades e plena de furores cósmicos de causa desconhecida.

A tarde chega ao fim e o Sol toca as águas do rio que se misturam com o mar aos poucos. Ainda faltam algumas horas para que a Lua esteja alta no céu. Alice volta as costas às ondas murmurantes de desejo e dirige-se ao Centro Comercial Vasco da Gama para se esquecer, novamente, de si.

Podemos encontrar Alice em todos os autocarros que partem para destinos longe da cidade às 5h da manhã ou às 21h da noite. Os autocarros transportam eficientemente corpos em construção para aquém do rio Tejo e nada os favorece nesta estética urbana de cinzentos e brilhos demasiado ávidos nos casacos e ténis de marca. A noite é eterna e quando o Sol nasce os corpos tombam na expectativa das sensações que a acompanham. Fala-se tanto na luz de Lisboa – reflexo das fachadas e centros comerciais, becos e casas escuras no cenário apenas iluminado por candeeiros e isqueiros.

Nome: Alice G.
Idade: 43 anos
Filhos: 1 filho (morto)
Estado civil: solteira
Habilitações académicas: lic. Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Profissão: empregada de limpeza no Tagus Park das 6h às 10h, copeira no restaurante «Varanda Tagus» das 12h às 16h e ocasionalmente biscateira de fantasias no Poço do Borratém (é só desta vez)

Tejo – Lisboa: mar e rio em cópula eterna.

(é curioso que a Mãe de Santo Clarisse que trata de amores, desamores, invejas, amarrações, problemas profissionais e financeiros por apenas €50, não possa estar presente – hoje - neste momento tão importante da vida de Alice G. Mas ela, a Mãe de Santo, representa um sucedâneo daquilo que a sua vida poderia ter sido, tal como os restantes elementos que dessa vida fazem, fizeram ou farão parte. Também o potencial desperdiçado e as oportunidades perdidas constituirão uma estética nos dias de hoje? Enumerar os fracassos de toda uma vida corresponde, talvez, a uma checklist invertida, não sei, acho que estou a procurar sentidos onde não existe a possibilidade de os nutrir e desenvolver, as questões filosóficas são para os doutores e mestres que percorrem as faculdades com os seus átrios imaculados e o tempo esquecido no decorrer dos dias, vou agora enfrentar o meu Destino e, pensando em desafiá-lo, cumprirei eventualmente o que desde o início dos tempos estava estipulado para a pessoa de Alice G.)

As flores dos jardins, no Parque das Nações, mal suspiram quando Alice se atira para as águas mansamente escuras do rio. Por entre os seus cabelos voga a oferenda a Iemanjá.

ORACULAR

I
O terminal de camionetas surge difuso e insonoro aos seus olhos. Ela pára e procura orientar-se. As pessoas em redor abandonam o terminal e tudo lhe parece cinzento. Chove e o telhado de zinco colocado para proteger os utilizadores das camionetas ecoa o tamborilar dos pingos.
Quem espera por ela desta vez? Uma rapariga com menos de 25 anos veste um casaco amarelo e uma saia vermelha e parece aguardar a chegada de alguém com o olhar que ela já aprendeu a reconhecer: avidez, fome e esperança. Aperta uma bolsa preta com motivos lunares na sua mão esquerda e isso, mais do que qualquer outro pormenor, fá-la avançar.
- Raquel?
- Sim.
- Onde vamos?
- A minha casa.
Apressa-se à sua frente. Ela percorre mentalmente as lâminas maiores do baralho de Tarot e pára no arcano da Torre. Este pequeno exercício mental permite-lhe recuperar a compostura enquanto caminha apressadamente atrás da Raquel e, ao mesmo tempo, avaliar a situação que ela atravessa. Destruição e necessidade de mudar a sua vida. Está na hora de partir e de voltar ao início, ao cerne das decisões que a trouxeram à situação em que se encontra aflitivamente empenhada. Olha para ela: grávida de dois meses. Não o disse, mas os pontos prateados em grande concentração junto do seu ventre denunciam-na.
Sobem as escadas de um prédio sossegado. No primeiro andar, perto da loja de animais, uma albicastrense de gema está no sofá a remoer glórias antigas, perdida na sua doença de Alzheimer e ignorada pela família de filhos e noras médicos. No segundo andar, um casal de jovens namorados deita-se e analisa os trabalhos de moda (coordenados) que a rapariga fez após terem satisfeito o seu mútuo desejo. Ele vai ajudá-la, sim, mas daqui a três meses estarão separados e ela perderá o ano por causa do choque – o namorado tão cuidadosamente controlado afinal revela-se rebelde o suficiente para a trair com um amigo de ambos.
Mais uma vez se interroga sobre a finalidade do seu trabalho. Nunca disse a ninguém o que vê: velhos no rosto de crianças, doenças incuráveis nas barrigas das grávidas, maridos e mulheres que se vão separar, o esquecimento, a dor, os filhos inesperadamente contraídos como se fossem doenças. As pessoas pensam que vê através das cartas, dos mapas astrais, das pedras ou seja lá do que for, mas a verdade é que utiliza todos esses meios para tranquilizar as pessoas: por vezes, mais nova, bastava olhar para que o discurso involuntariamente irrompesse da sua garganta, uma rebeldia que também teve de aprender a controlar.
Raramente, a Oracular toma conta e afirma-se no seu trabalho: as noites sob céus sem Lua e com um mapa estelar diferente. Noutro planeta ou apenas num tempo distante, Ela analisa pormenorizadamente a vida do mortal à sua frente e decide se este contribui para a Humanidade de um modo relevante.
Ela sabe quando e como irá morrer. Nesta cidade cinzenta de Castelo Branco, passará ainda um ano e um dia da sua vida e será feliz. Após esta estadia, também ela enfrentará o caos e a perda e ressurgirá. A Oracular manifestar-se-á quando entender necessário e um dia, daqui a 60 anos, partirá da sua cama julgando ainda estar viva. Será feliz e talvez visite novamente a cidade.
Vamos então começar, Raquel. Sentada, por favor relaxe e pense num lugar tranquilo, que ninguém possa alcançar e onde se sinta plenamente segura. Hoje vamos abordar a sua saúde, o amor, o dinheiro, a espiritualidade e os caminhos que se desenham para o futuro.
(tira as cartas e surge a Torre – fala sobre a necessidade de abandonar os padrões patológicos conhecidos e de uma fase de renovação)
A Raquel encontra-se grávida de cerca de dois meses. Sabe, mas não quer dizer ao pai da criança. Será um rapaz e vai dar-lhe o nome de Helder, como o avô paterno da criança, pois o seu amigo sempre idolatrou o pai.
(as três fiandeiras tecem irremediavelmente o Destino nesta e noutras cidades em todo o mundo)
Vai criar a criança sozinha…
(pronto, a Oracular está a chegar e sou empurrada para o lado onde observo, impotente, o que se segue)
O homem que gerou essa criança é fraco. Não te merece. Permitiste que um homem que era teu pai abusasse de ti e depois que o teu amigo te batesse. Raquel, em nome das Senhoras da Trácia parte desta vida e leva o teu filho contigo. Não tens de cozinhar para a tua mãe ou para ninguém. Pega no teu cavalo e vai-te embora desta cidade. Numa outra cidade a sul, Olisipo, encontrarás um novo mister com palavras ao vento e sustentarás a criança durante os primeiros 7 anos. Depois disso, encontrarás um homem com quem ficarás durante 30 anos e com ele aprenderás a ser feliz. Pedimos que uma vez por mês deites ao rio Tagus uma oferta de pão e leite em nome das Senhoras da Trácia. Se aqui permaneceres, morrerás na casa dos médicos com um braço partido e o rosto desfeito - o teu filho ficará sozinho. Tens de partir imediatamente.
Raquel, como sempre acontece nestes casos, chora copiosamente. Oferece-lhe comida, mas ela apenas quer os 30 euros combinados. Veio de tão longe para lhe dizer algo que a Raquel sempre soube, no mais fundo de si, ser verdade. De repente, a depositária sabe que percorrerá todos os cantos do mundo e que a sua sorte jamais mudará: trazer à consciência das pessoas que requerem os serviços aquilo que escondem debaixo de medos e preconceitos. Já aconselhou ministros, cartomantes, cantores, escritores, actores e variadas pessoas. A todas pede o mesmo valor: €30. Mesmo que queiram recompensá-la, não aceita nada mais do que isso.
II
De regresso ao terminal, envelhece e coxeia. Retira a bengala portátil do saco que traz consigo e pensa, mais uma vez, que sob o céu cor de chumbo de Março existem segredos comuns a todos os homens e mulheres que apenas assumem roupagens ligeiramente diferentes consoante a zona geográfica e a época em que as pessoas vivem. O amor, esse travão no conhecimento entre duas pessoas, é utilizado como pretexto para colocar em prática outros sentimentos: ódio, desejo de controlo, desejo, ciúme, sentimento de posse. É «amor» o que um namorado murmura quando atira ácido à cara da sua namorada para impedir que ela tenha outros homens na sua vida. Mas também é amor o que Raquel sente, dezasseis meses mais tarde, quando segura Helder nos braços. Está sozinha em Lisboa.
Quanto a ela, encontra-se agora na Turquia, na antiga Anatólia donde há muitos anos partiu. Segura o seu bordão e pede comida às mulheres que encontra no caminho. Por vezes, as palavras da Oracular surgem e a depositária transmite as respectivas mensagens às pessoas visadas. Da sua sorte ninguém averigua. Os cabelos loiros e os olhos negros chamam a atenção de algumas pessoas, mas desde que esteja velada ninguém faz perguntas.
Retoma, por fim, o seu lugar de virgem de pulsos e seios quebrados entre as suas irmãs de templo. Agora, os seus ouvidos emudecem. Já não mais desaires e súplicas quebrarão o seu exílio; vive apenas para os ventos que marcam a passagem do Tempo. Um dia será derrubada, mas já aprendeu há muito a transcender a sua condição de estátua esculpida em mármore branco.

terça-feira, 16 de março de 2010

Carta de Amor

Non tires las cartas de amor:
«Caerón los años. Te cansáran los libros.
descenderás aún más,
e, incluso, perderás la poesia.
El ruído de ciudad en los cristales
acabará por ser tu única música,
y las cartas de amor que habrás guardado
serán tu última literatura.» Joan Margrit (catalão)

Portugal, Fevereiro de 2010

AO MEU AMOR:
Levanto-me desta secretária que nos ocupou durante toda a vida. As minhas mãos repousam no postal que me enviaste quando éramos apenas adolescentes a frequentar a escola liceal. Com um pragmatismo muito teu, perguntaste-me se queria namorar contigo para experimentarmos todas as sensações que o nosso corpo em ebulição exigia – e porque, pretendendo ficar comigo para sempre, preferias que as nossas experiências se resumissem apenas ao corpo e ao ser um do outro.
Mas, como sempre acontece, a vida tomou o seu rumo e eu fui para Genebra enquanto partias para os calores de África e para o mato perigoso de Angola.
Aqui, neste espaço epistolar e durante este período de 40 anos, fomos o casal mais feliz do mundo. Construímos um casamento assente nesta secretária de carvalho e os nossos filhos partilharam, sem o saber, ânsias e poesias secretas desvendadas em cada um dos olhares, cheiros e memórias nossas em fulgor de cristal e terra. Aqui cresceram os desejos, as alegrias e as ambições temperadas pela quietude muito nossa de quem nada espera do amanhã. Ambos ouvimos falar de um Abril distante que trouxe de novo o Sonho a Portugal e ambos chorámos quando essa promessa emudeceu no tiquetaque dos dias. Acompanhei toda a carreira que transmutaste num modo de servir os outros – a tua escrita era um astro, um ardor de transformação e creio que as tuas palavras se derramavam sobre quem te escutava como a água da chuva sobre os campos ressequidos após um período de seca.
Como um potro, também eu enveredei pelas minúcias da profissão de farmacêutica e tu sempre amparaste os meus receios quando, à noitinha, a luz do Sol crepuscular se debruçava sobre o teu perfil à luz de uma cadeira num terraço de Verão. As andorinhas piavam então e eu acreditava em nós. Era o espaço em que a brancura da existência surgia plena e, por conseguinte, me cegava a tudo o mais.
Uma vez, quando deixei de acreditar em tudo (tiquetaque tiquetaque), enviaste-me este poema:

O amor
É talvez uma borboleta que voa
na praia deserta
onde as marés beijaram as areias
e destruíram efémeros
castelos de ilusões.

Então compreendi.
Hoje apenas quero pedir-te perdão por nunca te ter visitado, meu Amor, meu Herói, meu Rei. Agora, quando o Sol nascer, cerrarei os meus olhos devagarinho e verei mais uma vez o teu perfil de soldado crepuscular. Embarcaste, nesse dia, em direcção a uma vida maior do que tu. Nunca nos encontrámos mais tarde porque escolhi viver uma vida menor do que nós. Fui menos do que poderia ter sido. E hoje, dois meses após receber a tua última carta, vejo a notícia da tua morte num jornal português que assino e que leio regularmente. Não consigo compreender como a tua vida pôde, inteira, caber naquele obituário – é sempre tão mais pequeno do que nós. Quero também sentar-me neste lar português (chamam-lhe «Residência M.» e eu apenas oiço o tiquetaque, tiquetaque, tiquetaque), rodeada de filhos e netos no Dia de São Valentim, e recordar quem fui antes de me esquecer de mim. Depois estarei pronta para partir.
As cartas e o obituário são a nossa última música. Porém, estarei sempre à espera de ti na nossa secretária de carvalho para construirmos a literatura que talvez nos permita evadirmo-nos da condição de passageiros em corpos à espera de obituários.
Seremos mais do que as sombras e a poesia permanecerá connosco.
Tiquetaque – tiquetaque – tiquetaque.
Tiquetaque.
A tua Amada

NOTA: Carta de Amor premiada com o 1.º prémio do 2.º escalão do concurso de Cartas de Amor alusivas ao Dia de São Valentim promovido pela Biblioteca Municipal Laureano Santos (Rio Maior) em 14 de Fevereiro de 2010