domingo, 30 de agosto de 2009

DESAPARECIMENTO

Os risos das ninfas esgotaram-se nos bosques

e a beleza grácil da floresta

salienta-se despida de magia


não há mar, apenas a terra interna

do murmurar aéreo dos ramos

entrelaçados

sem dia seguinte


a lembrança da caçada selvagem

já não ressoa nas montanhas

as árvores emudeceram celestiais

e a lua já não esconde letal

a súbita aljava da Deusa


os homens não perseguem a natureza

já não procuram o território inviolado

das coisas

na sua desilusão constroem-se lacunas imensas

no rasto vazio do tempo

BUSCA DE POESIA

procuro na face mundana

do dia

a forma justa do dizer

poesia.


No entanto,

as mãos grosseiras do verbo

ocupam o espaço

essencial ao silêncio.


Por isso, o canto

rompe apenas

o dia aparentemente mais claro e seguro

ou o segredo obscuro

de uma noite que sorve a alma.

EXPERIÊNCIA


A pedra que brota do chão

murmura no tempo sem sonhos

o teu nome.


A voz completa-se oca no zénite do vento

lá jorram nascentes de coral

que apaziguam a dor de existir.


Ilustração por: Helder Macedo

COM VAGAR

Parti a lança inteira

no ferimento que transporto

e que se abeira

da palidez da dúvida em cada momento


e reconfortada

pela certeza

do lugar das coisas

na ordem cósmica recriada

com vagar

me embrenho na dor

de sentir o mundo

RE(LI)GIÃO ABRUPTA

vejo-me grávida da luz que me molda

ainda antes de iniciar a vida


e luto desmesurada

agreste forte e perdida


enquanto todos se acotovelam

anelantes por algo fora de si

só eu tremulo contra a vaga adormecida

só eu rasgo os cortinados do tempo

só eu me descubro matéria e magia

entretecida

por mãos maiores no planalto

na montanha mumificada e sem voz

de uma abrupta alegria

PRISIONEIRA

Amante e estranha

ao teu segredo

por ti enfrento o degredo:


Aidoneus sátira do mundo

encantamento do medo feroz

amado algoz

da descoberta


por ti abandono a planície aberta

a verdade evidente

e o narciso perfumado

e nas áleas sombrias de névoa

me reconheço em ti ente marcado

CHAMADA

Clamei por ti desfazendo casulos de mágoa

e nada foste para além

de um burburinho


no chão da vida

o horizonte desmantela-nos


há sempre uma alternativa

ÂNFORA

só sei medir o espaço do desencontro

através da quantidade de vinho e água

que me dás a beber


amanhã acordarei para além das coisas apartadas

e encetarei de novo

uma astúcia no tecido urgente do mundo

RAPTO

Seguirás o teu homem

na pista do que é lunar nos dias

pois ele obriga-te a fechar os olhos à noite

ele impede-te de celebrares as flores estreladas que há no céu

ele está perto e distante do teu âmago


gostarias de uivando deitar garras ao homem

mas já não te encontras entre irmãs

e a fome é agora só tua

se morreres ninguém te chorará

e o teu seio amputado não é vantajoso

no tipo de combate que travas

sob o reflexo metálico do sol


nunca foste racional e de leis

agora tens de viver subjugada e cega

na linha branca extrema do dia

DEMOFOONTE

Na lua

da manhã

brotas impávido

na certeza de que és amado


a ternura do fogo envolve-te

vitreamente

enquanto és embalado

pela lucidez de uma mãe

que nada sabe de ti


um dia, crescerás

serás um homem corajoso

ESCULTURA

Posso encontrar em ti outros sentidos

que não os da geometria inicial

e desdobro entre os dedos fendidos

um vislumbre que se pretende marginal


há mutilação inscrita em ti

em cada toque

e destruir-te é apenas

completar-te


mas nada captas

das sibilas que se encontram

no musgo do tempo


e à medida que a ânsia quase báquica

me devora

cumpro o teu propósito original

O ESTRANGEIRO

Inviolada,

lanço palavras para que a floresta saiba

que um estrangeiro se aproxima


e quando os risos

me fazem regressar à caçada,

vejo que

talvez pudesse amar

o homem que destruí


furiosa, atravesso uma corça prenha

com as minhas setas

emprestadas

e descubro-me só e poupada

na quietude da culpa

SINAL

Mergulho na montanha solene

onde vivo pequena entre gigantes

e corro atrás da memória


após derrubar estátuas

de inimigos

vejo os passos dos

que, sem cessar, abandonam a vida


no espaço vazio

que me fica deles

cultivo ardentemente

a sua recordação


como recompensa,

por vezes surgem na ilusão de mim

ALICE

Não existe qualquer espécie de paz

no outro lado do espelho


apenas me encontro

iludida

e sem respostas


invento seres que nunca houve


para me reencontrar nua

e rindo benévola

sob a luz cruel da procura

CONDIÇÃO MORTAL


a alegria

de saber cada momento

bizarro e exclusivo

fecha-se em mim

e irradia como alimento

furtivo.

sábado, 29 de agosto de 2009

ENDIMIÃO


Estás abraçado

à terra que te devora.

O teu sangue é o tributo

que a floresta exige.


A Deusa

debruça-se sobre ti

e lunar

esgota-te mais ainda.


negra, a floresta

bebe o teu sangue

baixinho


o humano está a dormir

SER


a dissolução do prazer

que em mim encontrou

o distanciamento justo


após dispersa me ter entregue

a tudo

depois da renúncia total

a milénios de estudo


o momento é o que persiste

lâmina verdadeira da consciência

LUA

Devoro a partir das árvores

a clareira branca

que me obscurece os sentidos


poisada como um sopro

na vida nocturna dos pássaros

sinto a areia no meu hálito


antes do dia nascer

o vento arremessa-me para dentro de mim

novamente


entre fios de sensação

disperso-me como um som grave


e perante a Lua

compareço pagã primária

e obediente

PRESO NO REFLEXO

Como outros,

preferes ver

o teu reflexo a sul

de ti próprio.


Detestas a sabedoria

de te aperceberes

da alma:

fio oculto

no manto de seda do céu.

PALAVRAS COMO MALDIÇÕES

Há coisas que se escrevem

para serem proferidas

sem voz


debitadas, murmuradas

elas tomam as mãos

que as sublinham

ténues

e aprisionam sensatamente

a vida de quem as devora


palavras como maldições

que rasgam, breves,

desejos e ambições

LABIRINTO

Escapa-se-me a vida

por entre o encapelar

das palavras.


Na avenida

onde se desenham rostos

surdos de alento,

reconheço que

o desejo de tudo

é exterior a mim.

Sou um dédalo de sentimentos.


Como Ariadne,

desenrolo o fio de corda

e espero, estranha ao mundo,

que alguém o siga.

MORTE NO PINHAL

As raízes

apertam-me nos seus gritos


ao longe e tão perto,

o mar onde nasci

morre, como eu, na areia


sei que é necessário

desaparecer na caverna

antes de conhecer

o sonho que me liberta.


sei que os pinheiros embalarão o meu medo

nos seus ramos

enquanto procuro o meu regresso

em segredo.

SAGITÁRIA


Ainda existem matas

que reflectem

os teus passos na floresta.


Mas desfizeste a aljava

ao longo do meu crescimento

e hoje, quando invoco a tua sombra,

cresce em mim o vazio.

Estudo e vivo

Estudo e vivo

pelos livros

a forma de ser

um cânone

de ilusão


percorro longamente

o esguio trilho de lágrimas

que constrói os sonhos

SEGREDAMOS

No outro dia, casualmente,

descobri que as ampulhetas,

como madeiras,

sofrem de uma praga

de insectos


já os bichos

se entretêm

a comer o tempo

HERÓI

Já pergunta por ti a esperança

que deixaste crescendo no meu ventre.


Vejo no mar

que os teus gestos te obrigam a ficar

preso a um destino

que não pretendias.

domingo, 23 de agosto de 2009

TRANS – POSIÇÃO

Transponho sem questionar

a fronteira do discurso

e do pensamento

disperso


brotam em mim acácias

e seios de cetim

engolem os meus lábios


neste dia, na margem transparente

vivem os deuses da montanha

e os pesadelos que me procuram


e debruço-me sobre as coisas como um fio

FLOR



De lamentos me cansei

como da cama onde me deito.


Esperei em vão acolher-te no meu peito

e acreditei,

amigo, que virias colher a flor

em tempo justo.


Afinal, o amor

apenas ensinou ao meu ser

o esgar sombrio do susto.

sábado, 22 de agosto de 2009

A ESPERA



As avelãs caem

no regaço da minha espera.

Permaneço.


Os ventos vivem

de mil percursos de seda e tálamo

e não me dizem novas do teu paradeiro.


Sob os meus olhos estancados

à beira do tempo,

as flores de avelaneira

murcham no meu peito

e, amigo, esmoreço.

FUGA


Os segredos morreram

debaixo do metal líquido das árvores

as vozes que amanheceram

têm um timbre igual às de amanhã

e as pedras que despertam

cada vez devolvem menos cristal.


Esgotamo-nos lentamente

na certeza de já ter existido

um qualquer discurso atraente

que nos dotasse, a todos, de lugar e de sentido.

R.A.P.E - excerto de capítulo da obra «Reconstrução»

R.A.P.E. – Razoáveis Apoios aos Execráveis, Razões Aparentes para Esquecer, Rudeza Antes de Pedir Encarecidamente

Mas nada apaga aquilo sem ser a própria memória que a retrata sozinha

Amanhã esquecerei isto

Quem sabe?

Ele, Eles que a arrastaram que a taparam com o corpo

Amanhã serei outra pessoa e não esta a quem aconteceram estas... coisas

Esta pessoa foi para o lixo, para a reciclagem do cérebro mesmo que na sua vida tudo se quebre por entre os dedos como e ela precise de beber a destruição para se sentir viva e talvez um pouco bela face ao perigo

Sentir-se ferida por dentro e saber que a cortina que a separa dos outros está irremediavelmente destruída nunca mais haverá nada dentro de si a que possa chamar de seu

Deixai-me cantar a Donzela das Contradições

Deusa da perseguição selvagem e da roca atarefada...

Arqueira, caçadora, Ela corre pelas sombras das montanhas

E pelos montes ventosos

Empunhando o seu arco e lançando as suas flechas de tristeza

Também ela corre pela vida

Ele poderá estar ali, observando-a enquanto se banha com as suas companheiras de dança. Terá de O destruir e Ela dança acompanhada, mas caça sozinha. Terá de ser forte por si e pelas outras. Para defender um ideal – todos temos direito a um pedacinho só nosso sem que as portas sejam arrombadas e sem que as cortinas sejam cortadas à faca por esse intruso que é o Medo

Quem sabe?

Ela não se lembra

Começou aos onze anos.