terça-feira, 13 de julho de 2010

Crónica dos Mares

O autocarro avança lentamente pela rua, contribuindo para bloquear parcialmente o trânsito enquanto recolhe passageiros. Segunda-feira de manhã, pensou. Que dia agradável para estar dentro de um autocarro. Os cheiros, os corpos de gente estranha entre si e as vozes aumentam a impressão de sufoco.
Lisboa. Alice abandona o autocarro na Praça do Comércio. Prefere calcorrear a pé a distância que a separa da estação do Rossio. A Rua Augusta, como sempre, abarrota de pessoas a passear, a vender, a criar. Alguns homens de aspecto asqueroso pedem-lhe dinheiro; Alice não faz caso deles. Apenas pensa no seu Simão.
Simão nunca se destacara em nada senão na imensa capacidade de fuga de que fazia constantemente uso.
Um homem com um blusão de cabedal esbarra com Alice, distraindo-a do rumo dos seus pensamentos. A culpa é minha, não sou talhada para ter filhos, ser boa esposa e desempenhar o papel de boa mãe de família, gosto muito do meu filho e faço tudo por ele, mas o Simão nasceu de um acidente astrologicamente configurado, de um momento de fraqueza e cresceu fraco, como se dos momentos de fraqueza se pudesse elevar uma sombra que perseguisse os que nascem dela, da fraqueza. Encarou o homem que esperava o seu olhar, Como é bonito, Com licença, Peço desculpa minha senhora, É esta a minha fraqueza, gostar demasiado de homens bonitos. O pai de Simão (o Cornudo) também era bonito, mas hoje Alice recorda apenas um breve sorriso perdido há muito na noite. Tem quarenta anos e essa noite aconteceu há vinte anos - apenas voara e rira como uma deusa enquanto o sol não a chamara novamente à vida, à realidade da cama vazia a seu lado. Alice fora feliz durante essa noite.
Ela olha para trás, o homem abandonou-a e segue o seu caminho. Sobe maquinalmente os degraus da estação e depois aguarda o comboio para Sintra. Alice espera a hora de partir, mas muitas vezes a partida é apenas a chegada a um conhecimento íntimo que não quisemos reconhecer antes.
Mais uma vez tenta compreender como tudo aconteceu, saiu com umas amigas e resolveu levar um vestido vermelho muito bonito que comprara com insensatez. O homem era mais velho do que ela e muito bonito também. Alice gostou de se sentir invejada por metade das mulheres que ali estavam, como ela, à procura de uma aventura. É um mistério o que disseram, o que fizeram, só se sabe que houve um filho chamado Simão.
Alice G. usufrui de uma qualidade bravia de urze associada à sua beleza. Ela sempre assustou os homens que a pretendiam conquistar e que depressa debandavam em busca de presa mais fácil. Contudo, entregara-se a um desconhecido. E dessa noite nascera o seu Simão, aquele menino (agora já homem e nunca um menino) que ela resgataria mais uma vez do abismo.
Ele está na estação a pedir dinheiro, magro, mas bonito. Inicialmente, não reconhece a mãe naquela desconhecida curvada e amarga que lhe estende a mão e diz, Vamos, meu amor, vamos para casa. Quem és tu, pergunta de olhos toldados, tu não és a minha mãe, vai-te embora, não quero ir para casa. Mas acaba por ir e é Alice quem o despe, quem o mete na banheira (chorando ao ver as cicatrizes minúsculas que lhe cobrem primeiro os braços, depois as pernas e por fim a barriga) e lhe dá banho, cantando. É Alice quem o leva ao médico, quem o ajuda a fazer análises e a começar um programa de reabilitação do qual Simão foge invariavelmente.
Sou apenas uma sombra, repete Alice para si própria, a sombra de um sonho morto perseguindo um fantasma que amo. O meu filho - e tantas eram as imagens que lhe vinham à memória, Simão tão inocente e calado, muito sério e compenetrado do seu papel de homem enquanto esperavam ambos por um autocarro que acabou por não vir. Tiveram de tomar um táxi na confusão de Lisboa. Ela lembrava-se bem desse dia, mas não ele.
Desta vez foi mais difícil trazer Simão para casa, ele grita no meio da rua que a velha gosta de homens novos e bonitos e que vai para a cama com ela por causa do jantar e do dinheiro, por nada mais. Havia uma rapariga com ele. Ela deveria ser bonita, muito bonita, mas agora faltavam-lhe os dentes (tão nova, que desperdício) e tremia, o seu corpo magro apertado em roupas sujas. Os olhos eram verdes e foram decerto eles que a meteram nesta vida, um amante e depois outro falando dos seus olhos com sinceridade e mostrando essa sinceridade para depois mentir em tudo o resto, convencendo-a a permanecer cada vez mais longe daquilo que é. Agora surge como uma ruína orgulhosa de si mesma e afasta-se sem remorsos de Simão, quer estar longe de sarilhos para continuar no percurso de auto-destruição que traçou.
Alice arrasta Simão para o táxi e arrancam. Simão planeia, feliz, tudo o que fará quando estiver fora daquela vida, embaraçando-a e trazendo-lhe uma enorme felicidade que logo morre em cuidados. É este o meu filho, pensa Alice, alegria e dor ao mesmo tempo.
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Avança para a beira do rio Tejo do qual está separada pelas grades de segurança brancas. Ao longo das margens emparedadas que fita compenetrada da sua lucidez, Alice encontra tainhas e percas que competem pelos bocados de pão duro que deixou cair, um a um, na água cinzenta que reflecte (hoje) os seus olhos. Apaga o cigarro, esse vício que agarrou quando fez umas noites no Poço do Borratém para pagar o funeral de Simão.
Ali, no Parque das Nações, espera o nascer da Lua Cheia. Na sua mão direita traz a oferenda a Iemanjá que lançará para as águas pensando noutra Divindade – mas dessa, há muito que está arredada. É velha e só Hekata de tochas na mão e vestes enegrecidas pela radiância poderá recebê-la agora. Alice esqueceu durante estes anos os costumes antigos. Depois do Cornudo, esse desconhecido de quem nascera Simão após a entrega da sua virgindade (o sangue misturara-se com o vestido vermelho), Alice afastara-se de si própria enquanto mulher. Sou uma inútil, fiquei prenha durante toda a vida e, como todas as mulheres que ao mar encomendavam os seus homens e as suas vidas, sabia que qualquer filho está sujeito à morte tanto quanto a sua mãe. Devia ter tido mais filhos, sabia, queria, faria – ia, ia, ia.

A Mãe de Santo Clarisse afirma que este caso pode ser tratado. Basta manter as oferendas mensais a Iemanjá e a Iansã pela módica quantia de €150 por consulta. Obviamente, Alice suportará apenas a primeira oferenda. Opta por Iemanjá porque lhe agrada a ideia de uma Divindade que recebe as coroas floridas e os devotos de braços abertos, erguidos no meio do tumulto marinho dos oceanos africanos, asiáticos e lusos que correm nas veias de todos os que vivem e nascem em Lisboa. Iemanjá aparenta ser mais… abrangente (como detesta esta palavra). Talvez seja mais generosa para com os seus problemas e aflições de mãe destituída da sua função do que a Senhora Iansã, rebelde nas tempestades e plena de furores cósmicos de causa desconhecida.

A tarde chega ao fim e o Sol toca as águas do rio que se misturam com o mar aos poucos. Ainda faltam algumas horas para que a Lua esteja alta no céu. Alice volta as costas às ondas murmurantes de desejo e dirige-se ao Centro Comercial Vasco da Gama para se esquecer, novamente, de si.

Podemos encontrar Alice em todos os autocarros que partem para destinos longe da cidade às 5h da manhã ou às 21h da noite. Os autocarros transportam eficientemente corpos em construção para aquém do rio Tejo e nada os favorece nesta estética urbana de cinzentos e brilhos demasiado ávidos nos casacos e ténis de marca. A noite é eterna e quando o Sol nasce os corpos tombam na expectativa das sensações que a acompanham. Fala-se tanto na luz de Lisboa – reflexo das fachadas e centros comerciais, becos e casas escuras no cenário apenas iluminado por candeeiros e isqueiros.

Nome: Alice G.
Idade: 43 anos
Filhos: 1 filho (morto)
Estado civil: solteira
Habilitações académicas: lic. Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Profissão: empregada de limpeza no Tagus Park das 6h às 10h, copeira no restaurante «Varanda Tagus» das 12h às 16h e ocasionalmente biscateira de fantasias no Poço do Borratém (é só desta vez)

Tejo – Lisboa: mar e rio em cópula eterna.

(é curioso que a Mãe de Santo Clarisse que trata de amores, desamores, invejas, amarrações, problemas profissionais e financeiros por apenas €50, não possa estar presente – hoje - neste momento tão importante da vida de Alice G. Mas ela, a Mãe de Santo, representa um sucedâneo daquilo que a sua vida poderia ter sido, tal como os restantes elementos que dessa vida fazem, fizeram ou farão parte. Também o potencial desperdiçado e as oportunidades perdidas constituirão uma estética nos dias de hoje? Enumerar os fracassos de toda uma vida corresponde, talvez, a uma checklist invertida, não sei, acho que estou a procurar sentidos onde não existe a possibilidade de os nutrir e desenvolver, as questões filosóficas são para os doutores e mestres que percorrem as faculdades com os seus átrios imaculados e o tempo esquecido no decorrer dos dias, vou agora enfrentar o meu Destino e, pensando em desafiá-lo, cumprirei eventualmente o que desde o início dos tempos estava estipulado para a pessoa de Alice G.)

As flores dos jardins, no Parque das Nações, mal suspiram quando Alice se atira para as águas mansamente escuras do rio. Por entre os seus cabelos voga a oferenda a Iemanjá.

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