terça-feira, 13 de julho de 2010

ORACULAR

I
O terminal de camionetas surge difuso e insonoro aos seus olhos. Ela pára e procura orientar-se. As pessoas em redor abandonam o terminal e tudo lhe parece cinzento. Chove e o telhado de zinco colocado para proteger os utilizadores das camionetas ecoa o tamborilar dos pingos.
Quem espera por ela desta vez? Uma rapariga com menos de 25 anos veste um casaco amarelo e uma saia vermelha e parece aguardar a chegada de alguém com o olhar que ela já aprendeu a reconhecer: avidez, fome e esperança. Aperta uma bolsa preta com motivos lunares na sua mão esquerda e isso, mais do que qualquer outro pormenor, fá-la avançar.
- Raquel?
- Sim.
- Onde vamos?
- A minha casa.
Apressa-se à sua frente. Ela percorre mentalmente as lâminas maiores do baralho de Tarot e pára no arcano da Torre. Este pequeno exercício mental permite-lhe recuperar a compostura enquanto caminha apressadamente atrás da Raquel e, ao mesmo tempo, avaliar a situação que ela atravessa. Destruição e necessidade de mudar a sua vida. Está na hora de partir e de voltar ao início, ao cerne das decisões que a trouxeram à situação em que se encontra aflitivamente empenhada. Olha para ela: grávida de dois meses. Não o disse, mas os pontos prateados em grande concentração junto do seu ventre denunciam-na.
Sobem as escadas de um prédio sossegado. No primeiro andar, perto da loja de animais, uma albicastrense de gema está no sofá a remoer glórias antigas, perdida na sua doença de Alzheimer e ignorada pela família de filhos e noras médicos. No segundo andar, um casal de jovens namorados deita-se e analisa os trabalhos de moda (coordenados) que a rapariga fez após terem satisfeito o seu mútuo desejo. Ele vai ajudá-la, sim, mas daqui a três meses estarão separados e ela perderá o ano por causa do choque – o namorado tão cuidadosamente controlado afinal revela-se rebelde o suficiente para a trair com um amigo de ambos.
Mais uma vez se interroga sobre a finalidade do seu trabalho. Nunca disse a ninguém o que vê: velhos no rosto de crianças, doenças incuráveis nas barrigas das grávidas, maridos e mulheres que se vão separar, o esquecimento, a dor, os filhos inesperadamente contraídos como se fossem doenças. As pessoas pensam que vê através das cartas, dos mapas astrais, das pedras ou seja lá do que for, mas a verdade é que utiliza todos esses meios para tranquilizar as pessoas: por vezes, mais nova, bastava olhar para que o discurso involuntariamente irrompesse da sua garganta, uma rebeldia que também teve de aprender a controlar.
Raramente, a Oracular toma conta e afirma-se no seu trabalho: as noites sob céus sem Lua e com um mapa estelar diferente. Noutro planeta ou apenas num tempo distante, Ela analisa pormenorizadamente a vida do mortal à sua frente e decide se este contribui para a Humanidade de um modo relevante.
Ela sabe quando e como irá morrer. Nesta cidade cinzenta de Castelo Branco, passará ainda um ano e um dia da sua vida e será feliz. Após esta estadia, também ela enfrentará o caos e a perda e ressurgirá. A Oracular manifestar-se-á quando entender necessário e um dia, daqui a 60 anos, partirá da sua cama julgando ainda estar viva. Será feliz e talvez visite novamente a cidade.
Vamos então começar, Raquel. Sentada, por favor relaxe e pense num lugar tranquilo, que ninguém possa alcançar e onde se sinta plenamente segura. Hoje vamos abordar a sua saúde, o amor, o dinheiro, a espiritualidade e os caminhos que se desenham para o futuro.
(tira as cartas e surge a Torre – fala sobre a necessidade de abandonar os padrões patológicos conhecidos e de uma fase de renovação)
A Raquel encontra-se grávida de cerca de dois meses. Sabe, mas não quer dizer ao pai da criança. Será um rapaz e vai dar-lhe o nome de Helder, como o avô paterno da criança, pois o seu amigo sempre idolatrou o pai.
(as três fiandeiras tecem irremediavelmente o Destino nesta e noutras cidades em todo o mundo)
Vai criar a criança sozinha…
(pronto, a Oracular está a chegar e sou empurrada para o lado onde observo, impotente, o que se segue)
O homem que gerou essa criança é fraco. Não te merece. Permitiste que um homem que era teu pai abusasse de ti e depois que o teu amigo te batesse. Raquel, em nome das Senhoras da Trácia parte desta vida e leva o teu filho contigo. Não tens de cozinhar para a tua mãe ou para ninguém. Pega no teu cavalo e vai-te embora desta cidade. Numa outra cidade a sul, Olisipo, encontrarás um novo mister com palavras ao vento e sustentarás a criança durante os primeiros 7 anos. Depois disso, encontrarás um homem com quem ficarás durante 30 anos e com ele aprenderás a ser feliz. Pedimos que uma vez por mês deites ao rio Tagus uma oferta de pão e leite em nome das Senhoras da Trácia. Se aqui permaneceres, morrerás na casa dos médicos com um braço partido e o rosto desfeito - o teu filho ficará sozinho. Tens de partir imediatamente.
Raquel, como sempre acontece nestes casos, chora copiosamente. Oferece-lhe comida, mas ela apenas quer os 30 euros combinados. Veio de tão longe para lhe dizer algo que a Raquel sempre soube, no mais fundo de si, ser verdade. De repente, a depositária sabe que percorrerá todos os cantos do mundo e que a sua sorte jamais mudará: trazer à consciência das pessoas que requerem os serviços aquilo que escondem debaixo de medos e preconceitos. Já aconselhou ministros, cartomantes, cantores, escritores, actores e variadas pessoas. A todas pede o mesmo valor: €30. Mesmo que queiram recompensá-la, não aceita nada mais do que isso.
II
De regresso ao terminal, envelhece e coxeia. Retira a bengala portátil do saco que traz consigo e pensa, mais uma vez, que sob o céu cor de chumbo de Março existem segredos comuns a todos os homens e mulheres que apenas assumem roupagens ligeiramente diferentes consoante a zona geográfica e a época em que as pessoas vivem. O amor, esse travão no conhecimento entre duas pessoas, é utilizado como pretexto para colocar em prática outros sentimentos: ódio, desejo de controlo, desejo, ciúme, sentimento de posse. É «amor» o que um namorado murmura quando atira ácido à cara da sua namorada para impedir que ela tenha outros homens na sua vida. Mas também é amor o que Raquel sente, dezasseis meses mais tarde, quando segura Helder nos braços. Está sozinha em Lisboa.
Quanto a ela, encontra-se agora na Turquia, na antiga Anatólia donde há muitos anos partiu. Segura o seu bordão e pede comida às mulheres que encontra no caminho. Por vezes, as palavras da Oracular surgem e a depositária transmite as respectivas mensagens às pessoas visadas. Da sua sorte ninguém averigua. Os cabelos loiros e os olhos negros chamam a atenção de algumas pessoas, mas desde que esteja velada ninguém faz perguntas.
Retoma, por fim, o seu lugar de virgem de pulsos e seios quebrados entre as suas irmãs de templo. Agora, os seus ouvidos emudecem. Já não mais desaires e súplicas quebrarão o seu exílio; vive apenas para os ventos que marcam a passagem do Tempo. Um dia será derrubada, mas já aprendeu há muito a transcender a sua condição de estátua esculpida em mármore branco.

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