terça-feira, 16 de março de 2010

Carta de Amor

Non tires las cartas de amor:
«Caerón los años. Te cansáran los libros.
descenderás aún más,
e, incluso, perderás la poesia.
El ruído de ciudad en los cristales
acabará por ser tu única música,
y las cartas de amor que habrás guardado
serán tu última literatura.» Joan Margrit (catalão)

Portugal, Fevereiro de 2010

AO MEU AMOR:
Levanto-me desta secretária que nos ocupou durante toda a vida. As minhas mãos repousam no postal que me enviaste quando éramos apenas adolescentes a frequentar a escola liceal. Com um pragmatismo muito teu, perguntaste-me se queria namorar contigo para experimentarmos todas as sensações que o nosso corpo em ebulição exigia – e porque, pretendendo ficar comigo para sempre, preferias que as nossas experiências se resumissem apenas ao corpo e ao ser um do outro.
Mas, como sempre acontece, a vida tomou o seu rumo e eu fui para Genebra enquanto partias para os calores de África e para o mato perigoso de Angola.
Aqui, neste espaço epistolar e durante este período de 40 anos, fomos o casal mais feliz do mundo. Construímos um casamento assente nesta secretária de carvalho e os nossos filhos partilharam, sem o saber, ânsias e poesias secretas desvendadas em cada um dos olhares, cheiros e memórias nossas em fulgor de cristal e terra. Aqui cresceram os desejos, as alegrias e as ambições temperadas pela quietude muito nossa de quem nada espera do amanhã. Ambos ouvimos falar de um Abril distante que trouxe de novo o Sonho a Portugal e ambos chorámos quando essa promessa emudeceu no tiquetaque dos dias. Acompanhei toda a carreira que transmutaste num modo de servir os outros – a tua escrita era um astro, um ardor de transformação e creio que as tuas palavras se derramavam sobre quem te escutava como a água da chuva sobre os campos ressequidos após um período de seca.
Como um potro, também eu enveredei pelas minúcias da profissão de farmacêutica e tu sempre amparaste os meus receios quando, à noitinha, a luz do Sol crepuscular se debruçava sobre o teu perfil à luz de uma cadeira num terraço de Verão. As andorinhas piavam então e eu acreditava em nós. Era o espaço em que a brancura da existência surgia plena e, por conseguinte, me cegava a tudo o mais.
Uma vez, quando deixei de acreditar em tudo (tiquetaque tiquetaque), enviaste-me este poema:

O amor
É talvez uma borboleta que voa
na praia deserta
onde as marés beijaram as areias
e destruíram efémeros
castelos de ilusões.

Então compreendi.
Hoje apenas quero pedir-te perdão por nunca te ter visitado, meu Amor, meu Herói, meu Rei. Agora, quando o Sol nascer, cerrarei os meus olhos devagarinho e verei mais uma vez o teu perfil de soldado crepuscular. Embarcaste, nesse dia, em direcção a uma vida maior do que tu. Nunca nos encontrámos mais tarde porque escolhi viver uma vida menor do que nós. Fui menos do que poderia ter sido. E hoje, dois meses após receber a tua última carta, vejo a notícia da tua morte num jornal português que assino e que leio regularmente. Não consigo compreender como a tua vida pôde, inteira, caber naquele obituário – é sempre tão mais pequeno do que nós. Quero também sentar-me neste lar português (chamam-lhe «Residência M.» e eu apenas oiço o tiquetaque, tiquetaque, tiquetaque), rodeada de filhos e netos no Dia de São Valentim, e recordar quem fui antes de me esquecer de mim. Depois estarei pronta para partir.
As cartas e o obituário são a nossa última música. Porém, estarei sempre à espera de ti na nossa secretária de carvalho para construirmos a literatura que talvez nos permita evadirmo-nos da condição de passageiros em corpos à espera de obituários.
Seremos mais do que as sombras e a poesia permanecerá connosco.
Tiquetaque – tiquetaque – tiquetaque.
Tiquetaque.
A tua Amada

NOTA: Carta de Amor premiada com o 1.º prémio do 2.º escalão do concurso de Cartas de Amor alusivas ao Dia de São Valentim promovido pela Biblioteca Municipal Laureano Santos (Rio Maior) em 14 de Fevereiro de 2010

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